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Homens e crododilos

Que nos diria um astrônomo sobre o Homem? Muito provavelmente não se sentiria à vontade para considerá-lo como totalidade. Talvez tentasse enquadrá-lo em totalidades cósmicas maiores. Ao fazê-lo, forneceria ao antropólogo algo muito importante, com o auxílio do que poderia começar qualquer relativização: colocaria o Homem na escala do Universo. Não seria isso frutífero para nós, que implicitamente temos pensado o Homem como se fosse eterno? Vejam que interessante o esquema de "Calendário Cósmico", proposto por Carl Sagan [1977].

Admitamos a formação de nosso universo, há 15 bilhões de anos, pela grande explosão a que se convencionou chamar Big Bang. Condensemos o período decorrente desde então nos 365 dias de um ano. Teremos um calendário anterior a dezembro, comportando acontecimentos como a origem da Via Láctea (1º de maio), a origem do sistema solar (9 de setembro), a formação da Terra (14 de setembro), a origem da vida na Terra (cerca de 25 de setembro), a formação das rochas (2 de outubro), os primeiros microorganismos sexuados (1º de novembro), as plantas capazes de fotossíntese (12 de novembro), as primeiras células com núcleo (15 de novembro).

Somente no dia 1º de dezembro uma atmosfera significativamente rica em oxigênio começaria a se desenvolver na Terra, seguida do florescimento dos invertebrados (17 de dezembro), dos vertebrados (dia 19), da disseminação de vegetais (dia 20) e de insetos (21) pelo planeta. Entre os dias 22 e 24, poderíamos assistir ao surgimento dos primeiros insetos alados, das primeiras árvores, dos primeiros répteis e dinossauros. Mamíferos e pássaros não surgiram antes do dia 28, mesma data em que apareceram as primeiras flores e tornar-se-iam extintos os dinossauros. Esta é a véspera do aparecimento do primitivos cetáceos, assim como dos primatas. Os hominídeos viriam à cena no dia 30 de dezembro e no dia 31, finalmente, os primeiros homens dariam o ar da graça.

A partir desse ponto seria necessário abandonar a escala do calendário, adotar a do cronômetro e utilizar critérios mais precisos, até a espessura do minuto (isto é: 29 mil anos) e do segundo (475 anos). O Procônsul e o Ramapiteco, ancestrais prováveis dos macacos e dos homens, nasceriam às 13h30min desse dia 31; os primeiros homens por volta de 22h30min; as pinturas das cavernas européias teriam sido executadas às 23h59min. A invenção da agricultura ocorreria às 23h59min20seg. A civilização neolítica e as primeiras cidades às 23h59min35seg e nos quatro últimos segundos teríamos acotovelados o nascimento de Cristo, as grandes descobertas, os métodos experimentais em ciência, a bomba atômica, as viagens espaciais...

O astrônomo nos ensinaria o como esta totalidade a que chamamos "Homem" se dissolve em totalidades abrangentes e o como resulta de transformações macroscópicas de dimensões cósmicas e geológicas. Do turbilhão dessas transformações o Homem resultaria: não como o produto mais importante ou singular, mas como um deles. Seria uma função possível, de um mundo que poderia muito bem, como o fez durante a maior parte de sua história, existir sem ele. Por conseguinte, lição número um: humildade diante da imensidão de um universo solene e soberanamente indiferente à pequenez de nossos clamores de grandeza. Existe um mundo que é independente do Homem, do qual este é um resultado, uma "modificação" - se é que nesta escala de raciocínio este termo tem algum sentido.


(Rodrigues, José Carlos. Antropologia e Comunicação: princípios radicais. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. pag. 127-129)

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