DESCASCA-SE
LARANJAS
Cássia Nunes
Feira do Conjunto Itatiaia
(Goiânia,GO) – Foto: Kárita Gonzaga
Descascar laranjas,
descascar a si mesma. Somos constituídos por uma multiplicidade de elementos,
de camadas. Casca, pele, polpa, sementes, sumo, bagaço. Manifestamos e
acessamos tais elementos em diferentes situações, a partir de inúmeros olhares
que cotidianamente nos atravessam. Quem nos olha, como nos olham?
Partindo da
construção de uma metáfora da laranja como recurso para falar das relações
entre interioridade e exterioridade do eu e as maneiras como
nos mostramos aos outros, a temática do olhar é evidenciada nesta performance.
Para tanto, foi
idealizado um conjunto de ações desenvolvidas em espaço público, no intuito de produzir
provocações e compartilhar experiências com os indivíduos passantes. Se dirigir
a uma feira de rua, comprar um saco de laranjas, escolher um lugar entre as
barraquinhas e se acomodar. Vendar os olhos e descascar todas as laranjas do
saco, deixando acumular suas cascas nos pés e colo. Oferecer metades de
laranjas para as pessoas e descartar em uma caixa aquelas que não foram aceitas
por alguém.
Vendar os
olhos enquanto é realizada a ação trivial de descascar laranjas, imprime sutilmente
no trabalho uma noção de risco capaz de despertar no público curiosidades e elucubrações
acerca dos sentidos da ação desenvolvida. Bloquear em si o sentido da visão
para despertar o olhar do outro. O conforto proporcionado pela habilidade
adquirida ao longo da vida pelas inúmeras vezes que se repetiu o ato de
descascar laranjas é abandonado no intuito de reconfigurar e potencializar
outros sentidos exigidos nesta atividade. O tato vai sendo apurado pela
ausência da visão enquanto são criados ritmo e fluxo de movimentos, seguidos
intuitivamente. Intuição e repetição se articulam nesta proposição artística,
promovendo um conhecimento apurado dos objetos manipulados – laranjas e facas –
e das possibilidades de interação entre eles.
Feira do Conjunto
Itatiaia (Goiânia,GO) – Foto: Kárita Gonzaga
A escolha de
um lugar de fluxo intenso de pessoas, como o das feiras de rua, contrapõe-se à
proposta de realizar repetidamente uma única ação permanecendo em uma mesma
posição. São desencadeados enfrentamentos à lógica deste ambiente, marcado pela
circulação de pessoas e mercadorias através do comércio popular de alimentos e
artigos domésticos.
Na criação da
visualidade deste trabalho, é assumida a qualidade do que é precário e vulgar,
partindo do reaproveitamento de materiais de feira (sacos de frutas e legumes,
caixotes de papelão) na confecção da roupa e placas utilizadas, como também na
concepção do nome da performance, inspirado por aquelas placas populares encontradas em postes e muros, com anúncios tais
como VENDE-SE, ALUGA-SE, CORTA-SE, AMOLA-SE etc. A ideia de uma “Estética do
Mulambo” passa a ser delineada durante o processo de experimentações deste trabalho,
de modo que a precariedade dos elementos por ele apropriados sejam manipulados
na intenção de criar uma série de estranhamentos que incitem o público a se
aproximar e estabelecer algum tipo de relação com a performer durante a ação.
Feira
do Conjunto Itatiaia (Goiânia,GO) – Foto: Kárita Gonzaga
“Ela é sadia?”
“Moça,
qual o significado disso que você tá fazendo?”
“Olha
o dedo!”
“Acho
que ela fez uma promessa.”
“Por
que você tá jogando essas laranjas fora?”
“Deve
ser trabalho da universidade.”
“Ela
tampou o olho por causa do sumo.”
“O
que ela vai ganhar com isso?”
“O que leva
uma pessoa a gastar 12 reais e ficar aí sentada descascando laranja e dando
pros outros?”
“Deve
ser protesto contra a campanha política.”
“Ela tá falando da humanidade, que a
humanidade tá cega, destruindo a natureza.”
“Acho
que é um trabalho sobre deficiente visual.”
“É um trabalho sobre reciclagem, né?
Olha só a roupa dela!”
“Tô quase pegando uma faca e sentando
lá junto com ela!”
Estas são
algumas das falas pronunciadas pelas pessoas que presenciaram esta performance.
Instigadas pela estranheza da cena muitas pessoas se aproximam da artista
lançando indagações acerca dos sentidos que a levaram a fazer “aquilo”. Quando
ocorrem tais aproximações, a artista continua em silêncio, termina de descascar
a laranja que está em sua mão e em seguida, oferece sua metade àquele que
procura alguma resposta capaz de reorganizar suas sensações de espanto ou
desconforto, após terem suspensos os sentidos ordinários aos quais recorremos
para interpretar o mundo a nossa volta.
Oferecer algo
aos outros, por meio da experiência artística, possibilita estabelecer diversas
relações entre o público e a artista-propositora, como também entre o próprio
público. Ocorre uma espécie de tempestade de criação de novos sentidos, potencializada
pelo compartilhamento de um lugar alterado momentaneamente e mediada por ações
e sensações impregnadas de cheiros e sabores.
Feira do Conjunto Itatiaia
(Goiânia,GO) – Foto: Kárita Gonzaga
Muitas
laranjas foram divididas em Uberlândia-MG durante a 3ª edição
da Festa Performática Lollipop (2012), em Goiânia-GO na feira de sábado do
Conjunto Itatiaia (2012), no ROÇAdeira - encontros performáticos em lugares improváveis (2012) e no Ocupa Goiânia (2014).
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