Entre pêlos
Cássia Nunes
Ação realizada no Bosque dos Buritis em Goiânia como parte do trabalho
desenvolvido para a disciplina Masculinidades,
Estudos de Gênero e Arte Contemporânea, ministrada pelo Professor Fernando
Herraiz García no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual –
Mestrado/Doutorado da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de
Goiás. | dez. 2011
Surgimento
de uma proposição, cultivar os pêlos. Durante
algumas semanas, acompanhar o crescimento dos pêlos das axilas. Preparar o
corpo para a escrita. Silenciar, suspender o tempo para a concentração, imersão
no texto e suas falas. Criação textual como corporal. A escrita como ação não
basta em si, o corpo deseja se lançar pelo ambiente.
Colecionar
estratégias e técnicas de si, transportá-las.
Carregar uma sacola cheia de objetos, escolher um lugar, uma mesa. Organizar os
objetos sobre a mesa. Laranjas, faca, vaso com terra, sabonete, gilete, bacia,
leque, colírio, maquiagem, óculos com pintura de olhos nas lentes, algodão.
Descascar
uma laranja, descascar a si mesma.
Somos constituídos por uma multiplicidade de elementos, de camadas. Casca,
pele, polpa, sementes, sumo, bagaço. Manifestamos e acessamos tais elementos em
diferentes situações, a partir de tantos olhares que cotidianamente nos
atravessam. Quem nos olha, como nos olham?
Partindo da construção de uma metáfora da
laranja como recurso para falar das relações entre interioridade e exterioridade
do eu e as maneiras como nos mostramos aos outros, evidencio a temática do olhar.
Maquiar
os olhos, pingar colírio, repertório de olhares. Constantemente nos relacionamos com outras
pessoas e em tais interações realizamos um constante mostrar-se, apresentar-se,
revelar-se. Enquanto revelamos, também inventamos! Usamos estratégias que
variam de acordo com as situações e com quem nos envolvemos. Desenvolvemos “técnicas
de si” num infinito processo de construção do eu. Enquanto nos construímos, afetamos
as construções alheias. Nesses cruzamentos de olhares, nos cultivamos como a
uma planta. Ela tem sua natureza, sua matéria, mas assume formas variadas de
acordo com o lugar onde se enraíza e caso venha a ser domesticada, crescerá
conforme o tamanho de seu recipiente e a vontade da mão que cultiva.
Entre os objetos retirados da sacola estão uns
óculos com lentes de grau, no entanto, sobre suas lentes foram pintados outros
olhos, um outro olhar. São tantos os recursos do ver que estes ficam
organizados em camadas, um sobre o outro, mapeando tudo que nos envolve. Sobre
o olho, a lente. Sobre a lente, o grau. Sobre o grau, a tinta.
Retirar
os pêlos diante do olhar do outro. Com
meus olhos cobertos pelas lentes de outro olhar, preparo a gilete e o sabonete
para retirar os pêlos crescidos. Durante algumas semanas acompanhei seu
crescimento. Os pêlos produzem outro cheiro, outra movimentação dos braços.
Retirá-los usando uma lâmina, enxaguá-la em
uma bacia. Com a água dos pêlos molhar a terra do vaso onde as sementes da
laranja foram plantadas. Deixar o vaso escorrer, umedecer um algodão com esta
água de pêlos e terra, hidratar as axilas com ela. Escolher um local para
depositar o vaso, a casca e o bagaço da laranja.
:.
Estas são algumas anotações sobre as ações
realizadas no Bosque dos Buritis (Goiânia, GO) durante o último encontro com o
professor Fernando e os colegas que participaram de suas aulas. Tais ações
compõem a performance desenvolvida
como trabalho de conclusão do curso. O trabalho solicitado consistia na elaboração de relatos autobiográficos envolvendo experiências de gênero. A escrita, o crescimento dos pêlos, as ações
no Bosque. Todos estes momentos constituem meu trabalho performático.
Durante o processo de escrita dos relatos
autobiográficos, tive a idéia de deixar crescer os pêlos para fotografá-los e
anexar as imagens ao texto. Conforme cresciam, fui notando minhas adaptações
comportamentais e a modificação do cheiro de meu corpo. Neste período, só usei
blusas com manga para ir trabalhar na escola e quando saía para outros lugares
era inevitável tentar observar se as pessoas notavam meus pêlos. Procurava perceber
aqueles pequenos movimentos e expressões do olhar, quando por etiqueta social
tentamos disfarçar fingindo não ver enquanto desejamos olhar mais.
Diante desta relação com os pêlos e com os
relatos, fui idealizando algumas ações e experimentando em minha casa. Um aspecto
recorrente em minhas performances consiste na utilização de objetos do meu
cotidiano, muitas vezes presentes no espaço doméstico.
Observando os objetos que me rodeiam, fui impregnando
neles algumas das idéias e sentimentos presentes em meus relatos. Nós óculos,
leque, colírio e objetos de maquiagem, a questão do olhar como meio não só de
identificação, mas também como instrumento de conformação. A laranja como
metáfora do eu constituído em camadas
que perpassam nossas noções de interioridade e exterioridade. Nas sementes
plantadas no vasinho com terra, na água com pêlos jogada sobre a terra e no algodão
umedecido com água de terra e pêlos, a idéia de um cultivo de si como criação de uma imagem com a qual buscamos nos
identificar e ser identificados.
Partindo de ações simples e deslocadas de seu
lugar ordinário, achei necessário propor outro momento para este trabalho. Compondo
um ambiente com a presença de outras pessoas em que os elementos presentes no
texto pudessem ser acessados e recriados de outra maneira.
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