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tenho vivido uma crise que se estrutura em insights reflexivos, disparados por estímulos sensoriais cotidianos
engraçado falar que uma crise possui uma estrutura
estes insights reflexivos são formados pela mentalização de palavras e imagens desordenadas
não tenho conseguido juntar estes fragmentos e construir uma análise consistente capaz de me organizar
estes fragmentos são quando me percebo sentindo nos interstícios das estruturas discursivas que dão rumo e forma ao movimento ordenado das pessoas pela cidade
são lampejos
que me fogem
pois a eles não me detenho
pois são sensações do meu corpo
pois estou a sentir tantas coisas
pois meu corpo vai de um lugar à outro num trânsito do sentir
pois estou com preguiça das palavras

]sou uma professora que explica coisas sobre a vida humana em sociedade
uso palavras e seus significados para desenvolver algum conhecimento com meus alunos
tenho lapsos de memória durante as aulas
sofro de esquecimentos súbitos
pois tento fazê-los conhecer ideias sem corpo
discurso – organizo palavras sentidos coesão coerência – diante de nossas carentes experiências de corpo[

é uma crise que envolve esclarecimentos
esclarecimentos da qualidade do sentir
pois sentir é apenas um dos estilos de ser
a angustia da exigência por totalidades discursivas controláveis estancam a energia criativa

lançar-se à experiência do viver-compondo nesta forma de ser fragmentada
viver-compondo fora do discurso
viver-compondo no sentir
]






Dá-me tua mão:
Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.
Não era usando como instrumento nenhum de meus atributos que eu estava atingindo o misterioso fogo manso daquilo que é um plasma - foi exatamente tirando de mim todos os atributos, e indo apenas com minhas entranhas vivas. Para ter chegado a isso, eu abandonava a minha organização humana - para entrar nessa coisa monstruosa que é a minha neutralidade viva.
- Sei, é ruim segurar minha mão, É ruim ficar sem ar nessa mina desabada para onde eu te trouxe sem piedade por ti, mas por piedade por mim. Mas juro que te tirarei ainda vivo daqui - nem que eu minta, nem que eu minta o que meus olhos viram. Eu te salvarei deste terror onde, por enquanto, eu te preciso. Que piedade agora por ti, a quem me agarrei. Deste-me inocentemente a mão, e porque eu a segurava é que tive coragem de me afundar. Mas não procures entender-me, faze-me apenas companhia. Sei que tua mão me largaria, se soubesse.
Como te compensar? Pelo menos também usa-me, usa-me pelos menos como túnel escuro - e quando atravessares minha escuridão te encontrarás do outro lado contigo. Não te encontrarás comigo talvez, não sei se atravessarei, mas contigo. Pelo menos não está sozinho, como ontem eu estava, e ontem eu só rezava para poder pelo menos sair viva de dentro. E não apenas viva - como estava apenas viva aquela barata primariamente monstruosa - mas organizadamente viva como uma pessoa.
A identidade - a identidade que é a primeira inerência - era a isso que eu estava cedendo? era nisso que eu havia entrado?
A identidade me é proibida, eu sei. Mas vou me arriscar porque confio na minha covardia futura, e será a minha covardia essencial que me reorganizará de novo em pessoa.
Não só através de minha covardia. Mas me reorganizarei através do ritual com que já nasci, assim como no neutro do sêmen está inerente o ritual da vida. A identidade me é proibida mas meu amor é tão grande que não resistirei à minha vontade de entrar no tecido misterioso, nesse plasma de onde talvez eu nunca mais possa sair. Minha crença, porém, também é tão profunda que, se eu não puder sair, eu sei, mesmo na minha nova irrealidade o plasma do Deus estará na minha vida.
Ah, mas ao mesmo tempo como posso desejar que meu coração veja? se meu corpo é tão fraco que não posso encarar o sol sem que meus olhos fisicamente chorem - como poderia eu impedir que meu coração resplandecesse em lágrimas fisicamente orgânicas se em nudez eu sentisse a identidade: o Deus? Meu coração que se cobriu com mil mantos.
A grande realidade neutra do que eu estava vivendo me ultrapassava na sua extrema objetividade. Eu me sentia incapaz de ser tão real quanto a realidade que estava me alcançando -  estaria eu começando em contorções a ser tão nuamente real quanto o que eu via? No entanto toda essa realidade eu a vivia com um sentimento de irrealidade da realidade. Estaria eu vivendo, não a verdade, mas o mito da verdade? Toda vez em que vivi a verdade foi através de uma impressão de sonho inelutável: o sonho inelutável é a minha verdade.
Estou tentando te dizer de como cheguei ao neutro e ao inexpressivo de mim. Não sei se estou entendendo o que falo, estou sentindo - e receio muito o sentir, pois sentir é apenas um dos estilos de ser. No entanto atravessarei o mormaço estupefato que se incha do nada, e terei que entender o neutro com o sentir.
O neutro. Estou falando do elemento vital que liga as coisas. Oh, não receio que não compreendas, mas que eu me compreenda mal. Se eu não me compreender, morrerei daquilo de que no entanto vivo. Deixa agora eu te dizer o mais assustador:
Eu estava sendo levada pelo demoníaco.
Pois o inexpressivo é diabólico. Se a pessoa não estiver comprometida com a esperança, vive o demoníaco. Se a pessoa tiver coragem de largar os sentimentos, descobre a ampla vida de um silêncio extremamente ocupado, o mesmo que existe na barata, o mesmo nos astros, o mesmo em si próprio - o demoníaco é antes do humano. E se a pessoa vê essa atualidade, ela se queima como se visse o Deus. A vida pré-humana divina é de uma atualidade que queima.

(C.Lispector, A paixão segundo G.H.)







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